sábado, 29 de março de 2008

Divididos por um ideal


Todo mundo já estava sabendo do tal encontro que aconteceria lá no Diretório Acadêmico naquela terça-feira, só se falava disso, só se esperava isso. Mas não eram todos que estavam envolvidos que poderiam estar nessas manifestações. A ditadura estava aí, e a camada jovem da sociedade era a mais ativa, e era nesse meio que viviam Fred e Melinda.
- Eu não acredito que você não vai Fred. O pessoal da faculdade vai estar todo lá, a meta é pichar tudo se esses cachorros do poder não liberarem a verba para a reforma do centro de pesquisa, e quem sabe a liberação de alguns presos políticos, mas parece que não vão liberar.
-Então é isso, a idéia é ir pro encontro e sair pichando tudo em prol de um motivo que todos já sabem que está decidido? Que tipo de crítica é essa que transgride a lei por não haver ordem? Acho a causa muito passional. Eu não vou também porque não concordo com esse "pessoal" que vai estar lá, não quero ouvir discurso de revolucionário doidão e também não pretendo tomar borrachada dos policiais por estar neste circo desordenado de críticas.
-Fred, para com isso. Olha pra mim. Deixa de ser individualista, não faça de seus atos uma demonstração da falta de civilidade que há em você. Toda ação tem que ter uma reação. Eles erram, o povo mostra o que eles erraram e ultrapassa qualquer barreira que possa incomodar o ideal deles, que pra começar nem é democrático.
-Para com essa demagogia Mel, essas coisas nunca dão em nada, um dia tudo acaba mudando, sempre muda. Será que vale tanto sacrifício? Quantos de vocês já desapareceram? Em cada protesto que há, são novas baixas insubstituíveis. Eu acho um desperdiço estudantes passarem anos presos por uma causa que não vão poder saborear.
-Sua descrença me faz comprovar o porque desse conformismo que assola nosso povo. Minha mãe queria que eu fosse enfermeira, mas me diga como vou conseguir sobreviver não acreditando no governo que nos rege. Eu quero envelhecer tentando mudar as coisas.
Quem sabe eu consiga, quem sabe não, mas não conseguindo eu ainda fico com a consciência mais limpa que a sua. Fred, Fred, você não percebe o que o país está perdendo.
-Não sei mesmo, me de um bom argumento.
-A criatividade.
-Brasileiro sempre foi criativo, apesar de ser tolo.
-A criatividade voltada para a crítica. Tanto é, que há órgão feitos para vetar o que os artistas produzem com tanto sentimento e talento. Isso sim é disperdiço. Ou vai me dizer que é fã de pornô chanchada?
-Você quer me dizer que as produções cinematográficas no país poderiam ser melhores? Filme bom é de Hollywood.
-Não vejo.
-Eu vejo e adoro.
-E o Cinema Novo? Nossa literatura, nossas músicas, nossos pensadores. Você realmente está vivendo em outro país.
-Devo estar mesmo, naquele onde eu vou poder levar meu filho pra passear, poder viajar nas férias e conseguir suprir as necessisdades da minha família? Eu acho que eu gosto desse mesmo.
Fred pede licença para Melinda depois de olhar no relógio.
-Mel, gostei muito de te encontrar aqui, eu apareco no mês que vem. Quer que eu mande um recado pra alguém?
-Nossa, já deu o tempo? Que triste. Essas horas me dão um aperto. Volta mesmo, manda um beijo pro pai e tenta ficar de olho no Marquinhos pra ele estudar. Avisa que eu to bem. Pro pessoal da faculdade, se você os vir, diz que eu to inteira, e que logo estou de volta.
Depois de soar um apito agoniante, Fred levanta, põe a mão no vidro e faz barulho de beijo, esboçando um pouco de recentimento e pena. Um guarda pára atrás de Melinda que após levantar, é levada de volta a cela.

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